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De pernas pro ar

Jornal Movimento 5 de abril de 1976.

Utilizando o inverossímel, o lugar comum e a linguagem cabocla, Mazzaropi defende uma moral tradicional. E também brinca com o público.

O crítico Paulo Emílio escreveu certa vez sobre Mazzaropi: “Sabemos que o lugar comum é sempre verdadeiro e um filósofo francês já explicou que o único problema é aprofundá-lo. Mazzaropi não aprofunda propriamente nada mas os lugares comuns se acumulam tanto que o terreno acaba cedendo e como muitas descobertas ao acaso de desbarrancamentos, de repente desponta dessas fitas incríveis uma inesperada poesia”. Acho que não concordo com a propalada sabedoria do lugar-comum, mas sem dúvida concordo com Paulo Emílio quanto ao efeito que produz nas fitas de Mazzaropi, nada comum.

Nesta película em particular, O Jeca Contra o Capeta, gostaria de entender porque o lugar-comum não irrita e nem parece ser – como de fato quase sempre é – portador de uma forma de pensar desgastada e convencional. Suponho que seja porque se ligue a uma estrutura dramática tão destituída de verossimilhança que esta o force a mudar de natureza. O comportamento de alguns personagens, como Dionísia, não é apenas esquemático; vai muito além e afronta a lógica narrativa mais elementar e o contorno psicológico mais simples. Desta forma, a chatice de um pensamento convencional, deixa de ter o peso e o usual valor informativo ao ser encampado pelo absurdo das situações.

Sem dúvida para grande faixa de um público popular (pouco dado a bate-papos críticos depois de exibições cinematográficas) essa manifestação de um pensamento cristalizado pode responder de forma tranquilizadora a expectativas quanto à organização da vida comunitária e virem, por causa disso, a agradar. Porém os lugares-comuns são manipulados em função, repito, de uma ação tão pouco crível que, mesmo esse público, talvez percam a função tranquilizadora corrente e ganhem outra, muito mais próxima à alegria sem compromisso das atividades lúdicas.

O Divórcio e o Capeta

Na estória desta fita o divórcio é divulgado por Dionísia para os habitantes da cidadezinha como lei aprovada, o que a torna imediatamente um poderoso instrumento na mão dos vilões. Na verdade a qualidade de negra vilania emprestada ao divórcio deflagra toda a ação da estória; por exemplo o sedutor Camarão, ao tomar conhecimento da lei do divórcio, ri satanicamente e tenta logo em seguida violentar a mulher do próximo: um revólver dispara e Camarão morre (também por causa do divórcio, como se verá no fim); mete-se a respeito de uma duvidosa herança. A motivação? O divórcio. Porém como tanto os divorcistas (os vilões) como os antidivorcistas (os heróis) agem da maneira mais fora de propósito possível na defesa de um ou de outro ponto de vista, a credibilidade de ambos os enfoques fica muito duvidosa.

Mazzaropi, seguindo uma tradição do cinema nacional, parodia também um dos últimos grandes sucessos cinematográficos americanos, O Exorcista, e, por extensão, a volta dos filmes sobre demonismo. (Quando a cama da mulher começa a saltar, Poluído diz: “Tá me lembrando um filme que assisti outro dia, ‘O Eletricista’).

Enfim, na intriga, o divórcio e o capeta são uma coisa só.

As falas de Poluído refletem o personagem de sempre, o Jeca, ancorado com tal força de persuasão em si mesmo que se constitui um ponto imóvel no desenrolar da trama. A fita do Jeca se liga saborosa e naturalmente a um meio ambiente rural antes de se ligar à estória e essa insubmissão do personagem diante do enredo vem a ser uma das maiores forças do filme. A fala, misturada a interjeições e gestos típicos de Mazzaropi, afronta, dentro de sua particularização naturalista, a natureza da fábula. Poluído, sempre que conversa, faz referências às coisas cotidianas, hábitos e usos das gentes do interior paulista. Quando, por exemplo, a mulher se queixa de forte dor de cabeça e o espectador sabe que ele irá cair em possessão demoníaca, Mazzaropi aconselha tranquilo: “Toma banho de picão, mulher, é bom, decansa o corpo!”. Quando Dionísia insiste, na fazenda, na noite do temporal, para que Poluído não saia, ele recusa: “Agora tenho que ir para casa, vou lavar os pés e vou dormir”.

A montagem mostra um bom conhecimento da técnica cinematográfica, mas curiosamente deixa passar alguns cortes tão simplórios quanto algumas marcações de cena dos melodramas circenses. A despeito disso – ou por causa disso – o interesse não se perde. É como se a convenção cinematográfica, ao faiscar, deixasse entrever uma outra convenção mais forte e mais ligada à tradição dos espetáculos populares.

Walt Disney Caboclo

O filme diverte todo tempo. A curiosa mistura: a fala naturalista do Jeca enxertada no mundo da fábula, alimentando esse híbrido de western e velho melodrama com um acento tão brasileiro, imprime ternura à nossa alegria. E o mundo da fábula, da brincadeira e do descompromisso, ao retirar em sua matéria de uma visão tradicionalista e rançosa, ao esvaziarem a tradição para engordarem a fábula, dão ganho de causa ao divertimento.

As platéias populares talvez gostem dele porque se reencontrem nesta forma de jogo e se revitalizem no contato simples com a estória.

As platéias não populares também podem gostar e se entusiasmar. Quem sabe porque a moral da estória, ao se tornar um mero pretexto para a estória, reflita alguma coisa de mais persistente do que qualquer moral ou qualquer estória: reflita formas vivas de vida comunitária e nelas descubra o engenho e a malícia da criatividade popular.

Mas os ganhos não são líquidos. Mazzaroppi possivelmente também tenha pago o seu tributo aos mecanismos do mercado. Talvez no desejo de fazer uma antipornochanchada, uma espécie de Walt Disney caboclo, programa livre para toda a família, tenha retirado à paródia da possessão demoníaca parte da sua força e alguma coisa da sua graça. O convívio pacato entre o sobrenatural e o natural, fonte tanto da narrativa de cordel como dos melodramas do circo-teatro e que tem suas raízes mais remotas no teatro didático da Idade Média, é anulado na última parte o que retira ao fim muito do seu encanto. É que as coisas todas acabam tendo uma explicação no mundo do homens. O Cristo que desce na cidadezinha, a mulher possuída, o padre endemoninhado, a metamorfose de Dionísia – tudo fica esclarecido. Alguns com mais jeito: o caso de uma cachorrada saindo debaixo da cama da “possuída”, outros com menos: a descoberta que o Cristo não passava de um hippie.

Enfim, com esse final a fita acaba por ganhar um pouco de respeitabilidade cacête que durante o seu desenrolar fora apenas o pretexto para um brincadeira da qual todos participam atores, produção, platéia.