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O povo está preparadíssimo

Folha de S. Paulo. Matéria de capa do Folhetim de 2 de julho de 1978.

Maravilhoso, grandessíssimo, vivaldino, ingênuo, cafona, autêntico, farsante, brincalhão vulgar; a ele, enfim, já se atribuíram todos os qualificativos do mundo.

Além de certa fixação no dinheiro, de que é muitas vezes acusado, há quem se queixe da possível ausência de uma visão social do personagem. “Tal como Pelé – responde uma aluna de Comunicações – podia ser mas não é”, enquanto se proclama, por outro lado, que “hoje ele não passa de uma caricatura de si mesmo”. Há quem sustente, inclusive, que só faz filme para analfabetos” e ainda há o elogio quase solitário de um Paulo Emílio Salles Gomes assegurando que, na verdade, “ele atinge o fundo arcaico da sociedade brasileira e de cada um de nós”. Ou que “o melhor dos seus filmes é simplesmente ele próprio”.

Amado pelo “povão”, esnobado por alguns, esquecido por poucos, criticado por outros, ele se incorporou, seja qual for a opinião a seu respeito, ao universo da cultura popular brasileira.

Milionário ou não, compreendido ou incompreendido, quem é, afinal das contas, o Mazzaropi gente, que se diz corintiano fanático, gosta de rock, Beethoven, Chico e Elis Regina; o ator que voltaria tranquilamente para o circo, se o cinema acabasse; o cidadão comum que defende, entre outras coisas, o direito do povo votar?

Com vocês, portanto…

Ah, é Mazzaropi!

Ao ver, de surpresa, a fotografia colorida de Mazzaropi, o chofer de táxi o reconheceu. E riu. O engraxate, o ambulante de quinquilharias, o vendedor de bilhetes de Loteria, o jornaleiro também.

A empregada também riu. A dona-de-casa, o porteiro de hotel, o pipoqueiro, o “seo” Manuel do bar de esquina, da mesma forma, o identificam, entre risos. O grupinho de operários de obras do Metrô, no Centro de São Paulo, não deixou de rir:

– Gosto sim. É muito brincalhão, faz a gente dar muita risada e lembrar dos tempos de interior, lá em Minas.

Até Arduíno Colassanti (o ator, vocês se recordam, do filme Como Era Gostoso o Meu Francês, de Nelson Pereira dos Santos), em plena São João, a caminho do hotel, não se esquivou do assunto. E, sorrindo, exclama:

– Mas ele é maravilhoso!

As reações se sucedem, iguaizinhas, aqui e ali. Sem que houvesse qualquer ensaio prévio, todos vão se manifestando com o mesmo riso fácil, de fazer inveja às claques de muitos programas humorísticos. O fato reproduz apenas episódios pitorescos que alimentam extenso repertório sobre o Mazza, como costumam chamá-lo seus amigos.

Ele próprio gosta de contar um deles. O do espectador do cine Art-Palácio que não perde nenhum lançamento seu. Chova ou faça sol, todos os anos, no dia da estréia do filme, lá está. Na mesma fileira, na mesma poltrona, sacudindo os braços, sempre gritando:

– Oi, Mazzaropi. estou aqui, hein!

“AO POLÍTICO FRACASSADO PREFIRO SER UM BOM PALHAÇO”

Atrás desse espectador anônimo, pode-se dizer, estão milhões. Que continuam fazendo filas diante das portas de cinemas do interior, garantindo-lhe bilheterias. Aqui, em sua casa no Itaim-Bibi, sentado ao lado do repórter, está Mazuropi. Ou seja: Amácio (e não Amâncio, corrige) Mazzaropi, nascido em 1912, na rua Vitorino Carmilo, em SP, batizado na Igreja de Santa Cecília, filho de pai italiano e mãe descendente de portugueses. Profissão: ator.

Com atenção, ouve a pergunta marota:

– Pôxa, Mazza, com tanta popularidade e você nunca se preocupou em candidatar-se, hein. Por quê?

– Eu não teria capacidade para dirigir parte dessa árvore que é o País. Acho que para dirigí-lo é preciso muita capacidade. Existem homens preparados. Eu não estou. Então, o que vou fazer na política? O próprio povo ia dizer: “não, o Mazzaropi é muito engraçado na tela, agora o que vai fazer no Senado ou na Câmara Federal?”. E estaria certo. Se eu quisesse, teria me preparado há muito tempo. Agora, pra ser político fracassado, prefiro ser um bom palhaço.

“EU JÁ MEDIA CASIMIRA FAZENDO POSE…”

Então, o que o levou a escolher essa vida de artista?

– Veja, desde criança já tinha mania de ser artista. Queria andar no arame, fazer tudo que via no circo. Era garoto e me levaram para Curitiba numa loja de casimira de meu avô, na rua 15 de novembro. Eu já media casimira fazendo pose! Vendia, imaginando uma câmara na frente! Tinha isso no sangue… Não, por incrível que pareça, não tenho nenhum artista na família. Mamãe passou a atuar depois, quando montei uma trupe …

E, por sinal, era uma boa artista.

Aí Mazzaropi parece mergulhar no passado. A começar de ator de circo ou teatro, quando viajava por todo o Brasil, com seu pavilhão de madeira, armado no primeiro terreno baldio que encontrava nas cidades ou vilas onde chegava. Ou de ator de rádio. De TV. Até que um belo dia alguém muito importante o descobriu através do vídeo. Era Abílio Pereira de Almeida, que o convidou para fazer cinema.

“ACHAVA QUE PARA SER ARTISTA, PRECISAVA SER BONITO”

Mazzaropi não fazia muita fé no convite, que desse certo no cinema. Achava que ser ator de cinema era assunto de gente bonita – e ele, definitivamente, não se achava fotogênico; faltava-lhe pinta de galã.

Ao contrário do que insinuava o título Sai da Frente, seu filme de estréia nos estúdios da Vera Cruz, Mazzaropi não precisou apelar às cotoveladas ou empurrões para pedir passagem em direção ao sucesso. Ao pintar nas telas, o público apenas aplaudiu.

Com Nadando em Dinheiro, seu segundo filme, ele se assustou. O público não reagiu sequer da mesma forma; manteve-se frio.

– Eu explico. Quando fizemos Sai da Frente o Abílio me deixou à vontade. Depois, o Abílio – Deus que perdoe pra ele – começou a exigir de mim que eu o imitasse. Ele fazia a cena e mandava eu repetir. Mas, acho que até nesse particular fui bom ator, porque um dia a sogra dele viu a fita e comentou: “Mazzaropi, vi a fita, mas não gostei. Vejo o Abílio na tela, não você”. Bem, se não consegui agradar ao público, consegui agradar o diretor…

“VOU FAZER O CAIPIRA, COM MEU NOME”

E, finalmente, em 1954, em Candinho, desponta o verdadeiro Mazzaropi com a sua figura de caipira. Mas quando surgiu o caipira com nome italiano, foi um deus nos acuda. Sorrindo, ele conta:

– Ah, os críticos diziam: “Onde se viu um caipira com nome italiano? Isso não vai pegar nunca. Ele precisa mudar de nome, arrumar um apelido, Nhô Sebastião, Nhô Belarmino, mas não Mazzaropi”. E eu insistia com Mazzaropi. Naquele tempo, era jovem, cheio de brio – e eu interpretava o caso diferente. Por que eu vou mudar de nome? Não vou roubar, não vou ser assassino não tenho portanto necessidade de esconder meu nome, vou ser palhaço mesmo, vou fazer o caipira. E com o meu nome.

– E a caracterização, Mazzaropi? Como você criou o personagem?

– De caipira? É o que a vida oferece. Não precisa ir muito longe, é só ir pro lado de Socorro, Santo Amaro, que já se encontra esse tipo que faço. Você viaja pelo interior e vê gente desse tipo. Aliás, havia críticos no início que diziam que eu fazia um caipira estilizado. Não é estilizado não. Eles que não têm conhecimento da realidade brasileira. Lêem livros de Monteiro Lobato e de outros escritores, mas interpretam da maneira deles… Como não convivem com o caipira, com o pessoal da roça, acham que não é daquele jeito. Acham que caipira tem que ser como o da festa de São João, em baile de Santo Antônio. Isto sim que é estilização.

“A ÚNICA DIFERENÇA É QUE NAO TEVE ESCOLA”

– O que é um caipira, segundo você Mazza?

– Caipira é um homem comum, inteligente, sem preparo. Alguém muito vivo, malicioso, bom chefe de família. A única coisa diferente é que ele não teve escola, não teve preparo, então tem aquele linguajar… Mas no fundo, no fundo, ele pode dar muita Iição a muita gente da cidade.

– Lição?

– Lição, porque se você aceitar a maneira dele falar e procurar o fundo da verdade que está dizendo, você se beneficia. O problema é que as pessoas desprezam a verdade, preferindo correr atrás de ilusões, das palavras bonitas, que é o caso de muitos discursos políticos.

E, contemplativo, quase iluminado, completa:

– Mas, há diferença muito grande entre inteligência e preparo. O sujeito pode ser preparado, mas pode também não ser inteligente. E tá cheio de burro diplomado por aí. E tem caipira, sem diploma, muito inteligente, dizendo a verdade. Ele está falando certo, só que fala de outra maneira.

“EU ATINJO TODAS AS CLASSES”

Festejado pela gente simples, há, contudo, aqueles que lhe fazem uma série de restrições. Aos olhos de seus críticos mais severos, por exemplo, Mazzaropi não passa de um artista vivendo dos aplausos de seu pequeno mundo.

Assim, sob o título “Um filme só para analfabetos”, um deles analisou Jeca Contra o Capeta sem complacência. E, rigoroso, concluiu que “enquanto a dublagem de filmes estrangeiros não for obrigatória, muitos que não podem ler continuarão sendo considerados público ideal para esse tipo de cinema”.

Mazzaropi, por sua vez, à parte qualquer desrespeito ao crítico, defende-se com simplicidade:

– Mas, eu atinjo todas as classes!

Apoiando-se, em seguida, num gesto do presidente da Academia Brasileira de Letras, argumenta:

– Se meu sucesso – se pode ser chamado sucesso – é devido ao despreparo do caipira, por que o presidente da Academia Brasileira de Letras mandou-me um cartão dizendo que eu era um ator que se comparava aos maiores atores estrangeiros? Ninguém agora pode dizer que o Athayde seja despreparado. Acho que só isso basta…

“SE O POLÍTICO ENGANOU, NÃO É CULPA DO POVO”

– Você falou tanto em despreparo, despreparado… Olhe, você também acha que o povo não está preparado para votar?

– Não, eu não acho que o povo não esteja preparado para votar. Pelo contrário. O povo está preparadíssimo! Agora, o que acho é que todos nós temos o direito de errar. Acreditar num candidato bom, naquilo que ele diz, nós temos o direito de acreditar. Sim, nós sabemos votar. Nós votamos naquele que nos pareceu melhor. Mas, se ele nos enganou, não é culpa do povo.

“EU APENAS MOSTRO O PROBLEMA”

Com Mazzaropi, em escala menor é claro, não estaria ocorrendo o mesmo. Ou seja, certa indiferença em relação aos verdadeiros problemas de seu público, como argumentam alguns. Ele, no entanto, contra-argumenta:

– Eu apenas mostro o problema mas à minha maneira. Os inteligentes devem aproveitar, transformar e dar a solução. Se são inteligentes, podem dar a solução. A mim, cabe apenas apresentar o problema, não sou eu que vou dar a solução. Não sou político, não tenho nada que solucionar problemas.

“FIQUEI SABENDO QUANTO VALIA EM TERMOS DE CRUZEIROS”

Após uma espécie de estágio no banco de reservas, como ator da Vera Cruz, Mazzaropi decidiu entrar pra valer no campo cinematográfico.

– O que me levou a fazer cinema? Foi a necessidade. Ganhava uma nota tremenda no tempo da Vera Cruz, mas ela acabou fechando as portas. Aí fui para o Rio, mas o dinheiro não dava. A fita ficava pronta, e eu sem dinheiro. Então resolvi fazer uma fita, né?

Mazzaropi vendeu casa, automóvel, alugou máquinas. Contratou gente e começou a rodar Chofer de Praça. A certa altura da filmagem, ficou sem tostão. Com isso, mandou-se para o Sul, fazendo novamente shows, tentando ajuntar os trocadinhos que faltavam para o filme, que finalmente ficou pronto.

– Qual foi a reação do público? Ótima, espetacular. Nesse dia, fiquei sabendo quanto valia Mazzaropi em termos de cruzeiros. Até o lançamento do filme, eu não sabia…

“NÃO TRABALHO POR DINHEIRO”

Então, como se insinua, o livro de contas seria o seu livro preferido?

– Aí é que eles se enganam. Na situação que estou hoje poderia muito bem estar viajando, pegar uma primeira classe de navio, ficar indo-voltando da Europa, gozando minha vida. Não precisaria ficar aguentando tanto desaforo como eu aturo… porque o dinheiro que tenho dá pra viver tranqüilamente até eu morrer e ainda sobra muito para ajudar a vida de muita gente.

E acrescenta:

– Não trabalho por dinheiro. Mas se um dia eu falar que vou parar de fazer cinema, vou afugentar um monte de investidores, porque vão dizer: “se pro Mazzaropi não dá lucro, ele que tem a casa cheia, o que nós vamos fazer? “.

– Conclui-se, portanto, que fazer cinema no Brasil é um bom investimento?

– Não, bom investimento? Não acho, porque você depende dos exibidores, das datas de programação. E, enquanto isso, vai gastando… Agora mesmo estou esperando a vez para lançar Jeca e Seu Filho Preto em Porto Alegre, Belo Horizonte…

– Você não veria aqui o problema de novos concorrentes, como o Dama do Lotação?

– Não tive concorrência nenhuma. Depois, só na primeira semana de exibição ganhamos em termos de renda desse filme, … cerca de um milhão.

“É PRECISO SER BOM COMERCIANTE PARA SER BOM ARTISTA”.

Quem espera encontrar em Mazzaropi traços de seu personagem cinematográfico, com seu chapéu de palha, calças arregaçadas, gestos desengonçados, jeitão simplório, lascando seu toco de fumo, por certo ficará decepcionado. Como ocorreu. por exemplo, com da. Isabel, sua cozinheira, em Taubaté:

– Nossa, moço – segredou – levei um susto quando vim trabalhar pra ele e dei com um senhor bem vestido, educado, bacana mesmo. Olhe, nem pensei que fosse o tal do Mazzaropi.

– Afinal, qual a diferença entre o personagem e o homem Mazzaropi?

Descontraído, ajeitando-se no sofá, ele responde:

– O homem Mazzaropi é um empresário, que pensa na sua empresa, na PAM-Filmes. Pensa na evolução do cinema brasileiro em termos comerciais. Ao passo que o Mazzaropi ator pensa naquilo que o povo quer ver, que gosta.

– E existem conflitos entre os dois?

– Eu consigo esquecer o Mazzaropi empresário para ser o Mazzaropi artista. Aliás, eu gosto mais do artista que do empresário. Fui empresário por força das circunstâncias. Mas, não adianta ser bom artista, se não sabe vender o produto. Ninguém vai dizer que você vale 10 se puder lhe dar 2. Você é que tem de se valorizar. Então, é preciso ser bom comerciante para ser bom artista, para ter sucesso.

“O SEGREDO DE UM HOMEM QUE A CRÍTICA NUNCA ELOGIOU”

Com esse título significativo, o respeitadíssimo professor e historiador do cinema Paulo Emílio Salles Gomes dedicou-lhe longo artigo, no qual admitiu indiretamente certo desamor entre Mazzaropi e os críticos em geral.

Após revelar, num misto de humildade e contentamento, a descoberta um tanto tardia do comediante durante exibição do filme Um Caipira em Bariloche, no cine Paissandu, justificou-se: “segui mal a sua carreira e nunca o encontrei pessoalmente”. E confessou que saiu do cinema com vontade de conhecer Mazzaropi.

“Me disseram – escreveu – que ele tem horror pelos intelectuais, o que, de certa maneira, eu sou”. A semelhança de uma confidência revelou um desejo:

– Fico encabulado de procurá-lo, mas acho que um dia irei bater na sua porteira, nos arredores de Taubaté.

Vítima de enfarte, em setembro de 77, o crítico morreu sem que tivesse concretizado seu desejo.

“SOU CONTRA O FALSO INTELECTUAL”

Ah, eu teria recebido muito bem, como receberia todos aqueles que me criticam sem conhecimento de causa.

– Mesmo sendo um intelectual?

– Não tenho nada contra os intelectuais. Eu tenho contra os falsos intelectuais. Aquele que vem do interior – ou mesmo daqui de São Paulo – e que consegue um lugar no jornal e começa a falar mal de todo o mundo e não produz nada. Esse é um fofoqueiro, não um intelectual.

Fazendo uma pausa, volta ao assunto dos críticos:

– O que eu tenho de dizer ainda da crítica é o seguinte: não gosto do crítico que só fala em dinheiro. Daquele que diz: “Mazzaropi vai ganhar milhões”. Isso não interessa, isso não é critica de cinema. Pra mim, crítica é aquela que aconselha, que ajuda. E repito: não estou tão interessado assim nos milhões. Ganhar dinheiro eu ganho desde que comecei a trabalhar…

E reafirma, num doce desafio:

– Além disso, se estiver fazendo filme de baixa qualidade, ainda estou dando lucro para o País, pois estou tirando, de qualquer forma, semanas do cinema estrangeiro. Estou dando serviço aos técnicos, estou mantendo o povo no cinema. Eu mantenho o povo no cinema, não deixo cadeira vazia…

De fato, chegando à marca de 30 filmes, muitos destes já lendários como A Casinha Pequenina, Mazzaropi pode proclamar, sem constrangimento:

– Eu existo dentro do cinema brasileiro!

“VOCÊ PRECISA SABER SE É FALSO (OU NÃO) BRILHANTE”

Comparecendo fielmente, todos os anos, na lista dos campeões de bilheteria do nosso cinema, ele já foi classificado de como o rei do cinema nacional. “É ele, só ele, e Roberto Carlos”, diz Dirce Rastelli, uma das revisoras de seus filmes.

Que ele é uma das maiores bilheterias do cinema nacional, ninguém desmente. Pelos números da Embrafilme, entre julho de 1970 e dezembro de 1975 a maior bilheteria nacional foi Jeca Macumbeiro: lançado em fevereiro de 75, rendeu somente até dezembro do mesmo ano Cr$ 10.573.277,84. Nesse mesmo período, 2.530.306 pessoas viram o filme. Só para citar um exemplo…

Misto de Cantinflas, ou de um Chaplin provinciano nosso como explicar, enfim, Mazzaropi?

– Identifico nele – responde o prof. José Marques de Melo, perito em Comunicações de Massa – um ator-empresário com sensibilidade para produzir mensagens cinematográficas que se aproximam do universo cultural da população de origem rural.

Trocando em miúdos, ele situa a presença ou influência dessa população em relação à arte popular. Isto é:

– É importante lembrar – destaca – que nos últimos anos cerca de 20 por cento da população emigrou do campo para as grandes cidades. E, naturalmente, esse contingente de migrantes ao buscar o cinema como forma de lazer prefere filmes que reproduzem tipos e situações peculiares ou seu mundo de origem.

Para o prof. Marques, há semelhança, sim, entre Mazzaropi e Cantinflas, “só que o primeiro cultiva o público nacional, enquanto o outro, depois de afirmar-se junto ao público de sua terra, buscou projeção internacional”.

Curiosamente, o mesmo não ocorreu com Mazzaropi. Assim, o seu Casinha Pequenina, com cópias em espanhol, continua na prateleira da sede da PAM-Filmes, no largo do Paissandu.

– Cantinflas? Ele – discorda Mazzaropi – não buscou projeção. Foi descoberto porque produzia num país muito próximo aos Estados Unidos. Tudo o que se faz no México repercute nos EUA. E nós estamos muito distantes, inclusive quanto à língua etc.

– Sim, mas deve haver outros fatores que o impedem de ultrapassar a fronteira do nosso mercado.

– É que todas as vezes que chega alguém do estrangeiro, vai logo dizendo: “O Mazzaropi é muito regional; o Mazzaropi não sei que, não sei que lá”. Daí, essa parede. E os caras não conhecem…

E prossegue, fazendo comparações poéticas.

– Veja, se você tem um brilhante e põe no meio da rua, colocando um tijolo em cima, você pode deixar o brilhante ali anos e anos e ninguém vai pegar. Você deve mostrar para que alguém se interesse. Agora, se você fica a vida toda escondendo… Não digo que eu seja um brilhante, falso brilhante, talvez, mas tem que ser colocado à prova para que se chegue à conclusão se ele é falso ou não…

Mazzaropi se lembra do episódio da Vera Cruz. quando chegou um grupo de norte-americanos querendo financiar alguns filmes da companhia. Mas quando falaram em Mazzaropi, um dos diretores cortou o papo, dizendo:”vocês tão brincando?” Acontece que o grupo acabou financiando exatamente a fita de Mazzaropi, o Candinho.

Este, em meio a um sorriso moleque, pergunta:

– Aí caiu a cara dele. E será que não cairia a cara também dessa gente que continua negando Mazzaropi para o estrangeiro?

“CHAPLIN? ELE TRAZIA O PASSADO DELE”

Retomando o fio da meada, Mazzaropi retorna ao Cantinflas:

– Não que desejo pichar alguém, mas o Cantinflas fazia umas fitas em preto e branco, bem domésticas, comerciais, com calças caindo, aquilo tudo.

E puxa o papo para Chaplin…

– O próprio Chaplin, que é o deus para a crítica, o que foi seu sucesso?

Foi o pezinho aberto, a cartolinha e a bengalinha virando, o bigodinho. Esse foi o sucesso de Charles Chaplin, o deus da crítica de todo o mundo. Alguém pode negar isso? O Carlitos – naquele tempo eu era menino, me lembro – não era a atração principal, era complemento. Primeiro passava a fita dele, depois vinha o d-r-a-m-a que era o programa que o povo ia assistir. Depois sim, ele deixou o pezinho, a bengalinha … e passou a fazer Luzes da Ribalta etc. Mas sempre trazia nessas fitas o passado dele, o sucesso, o trechinho do verdadeiro Carlitos.

“O SEGREDO DE SUA PERMANÊNCIA…”

…é exatamente a antiguidade”. Quem o disse foi o próprio Paulo Emílio. “Com isso – frisou – ele atinge o fundo arcaico da sociedade brasileira e de cada um de nós”.

Apesar do desfile de lugares-comuns, o crítico paulista reconheceu, em seu célebre artigo sobre Mazzaropi que, de repente, “desponta dessas fitas uma inesperada poesia”, observando que “isso em geral sucede quando ele não está fazendo nada de especial, apenas olhando, andando ou pondo fumo no pito”. E conclui, solene:

O melhor de seus filmes é simplesmente, ele próprio.
Ao relacionar, em seu livro Comunicação Social/Teoria e Pesquisa, alguns temas ou estruturas populares que, a seu ver , são fundamentais para a formação de uma teoria brasileira de Folkcomunicação, o mesmo José Marques enumera, entre outros, o circo, espetáculos de feira, além das romarias, camelôs, lendas e mitos tradicionais, festas religiosas e profanas.

Sem escrúpulos ou exageros, pode-se somar a esses elementos a figura, o personagem, Mazzaropi. Amado, festejado, criticado ou ignorado, faz parte do universo cultural popular, como o fazem a paixão pelo futebol, as devoções, os ex-votos, as superstições, receitas caseiras ou festas da gente simples do interior. E, certamente, os caminhos da pesquisa dessa cultura passam, queiramos ou não, por ele.

“NÃO SE PODE NEGAR O CAIPIRA”

– O que entendo por cultura popular? As raízes do povo brasileiro. Assim, negar o caipira brasileiro é negar a própria raiz. Acho que cultura é justamente não esquecer o passado, não esquecer nossas tradições… O meu público está comigo há mais de 40 anos e não me larga. Quer dizer que ele me entende. É o povão corintiano, o que tem paixão pelo seu time, o que ama Mazzaropi.

– Na verdade, não há nenhum crítico contra mim não. Eles não me picham assim, não. A gente só se pode considerar gasto quando o povo, o público, assim julgar. O crítico é uma pessoa. E no Brasil há 120 milhões de pessoas. Você quer que esse mundo todo leia pela sua cartilha? Será que você não estará errado? Será que só você é o dono da verdade?